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domingo, 31 de julho de 2011

"Pensamento social” e a infância



“Pensamento social” e a infância
Por Rita Alambre dos Santos, especialista em Educação Especial e Reabilitação e directora-geral da Fundação Renascer. Estágio de observação no “Social Thinking

A maior parte da aprendizagem social é feita por observação. Quer isto dizer que as crianças têm o talento natural para reparar na forma como os outros à sua volta estão a fazer e adaptar o seu próprio comportamento àquilo que é esperado em determinado contexto.

O Pensamento Social ou Inteligência Social consiste na capacidade que temos para reconhecer e compreender os pensamentos, emoções, desejos e intenções das outras pessoas, encontrando-lhes sentido e sendo capaz de predizer o que farão a seguir. De uma forma mais simples, podemos dizer que é a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. Desta competência depende a nossa capacidade de adaptação aos diferentes contextos e o sucesso ou não das nossas relações interpessoais, sejam elas íntimas ou casuais, familiares ou de trabalho... Permite-nos compreender a situação global e “intuir” a atitude a tomar perante determinado cenário. As competências sociais são os instrumentos que temos à nossa disposição para cumprir o objectivo final, ou seja, que comportamento tomar de maneira a que os outros pensem de mim aquilo que eu quero que pensem.
A capacidade para o desenvolvimento do pensamento social é inata, na maior parte de nós, sendo a sua aprendizagem feita por observação e imitação, ao longo de toda a vida. Na realidade trata-se de uma aprendizagem intuitiva, da qual temos pouca consciência. Por outro lado está também dependente da observação e compreensão de uma série de componentes da linguagem não-verbal, como as expressões faciais, o tónus corporal, a proximidade/distância a que nos colocamos dos outros, o tom de voz, etc., mais do que das palavras que são ditas.
De acordo com isso, desde o nascimento o bebé encontra-se num diálogo permanente com os seus pais, sendo capaz de alterar os seus comportamentos de forma a suprir as suas necessidades imediatas, bem como de ler os comportamentos destes, atribuindo-lhes significado.

O “treino das regras”
Se estivermos perante uma criança que não apresenta um défice na cognição social, a família, a escola, bem como outras actividades em que a criança esteja envolvida, incumbir-se-ão de fazer o seu papel de forma natural, ou seja, recompensá-la pelos comportamentos adequados e punir aqueles que não o são.
Pais e professores podem estimular estas competências, ajudando a criança, a partir dos quatro anos de idade, a compreender as consequências das suas acções nos pensamentos e sentimentos das outras pessoas em relação a ela e a reconhecer que tem poder para modificar a percepção dos outros a seu respeito.
Nas crianças mais novas, costuma ser útil a concretização destes conceitos em ferramentas mais fáceis de utilizar.
Michelle Garcia Winner (terapeuta da fala americana, especialista nesta temática e em crianças com défice de atenção) fala-nos de “pensamentos azuis versus pensamentos encarnados”, de “ficheiros de amizade” ou do “detective social” que há em cada um de nós. O que é que isto significa numa situação concreta? Quando estamos perante uma situação nova, em que não sabemos comportarmo-nos como é suposto, usamos os nossos olhos para pensar nos outros e para encontrar pistas no contexto que nos cerca. Agimos como um detective à procura de pistas para resolver um problema.
O objectivo é que os nossos comportamentos despertem nos outros “pensamentos azuis”, ou seja, pensamentos agradáveis que fazem com que gostem de nos ter por perto. Todos esses pensamentos irão ser guardados no “ficheiro” que têm na sua cabeça com o meu nome escrito. Da próxima vez que me virem, esse ficheiro abrir-se-á automaticamente e a reacção das outras pessoas à minha presença será tão mais positiva quanto maior o número de pensamentos azuis que tiverem armazenado a meu respeito.
Esta concretização de conceitos é o contrário do que geralmente fazemos com as crianças pequenas e ajuda-as a organizar o pensamento e serem capazes de cumprir aquilo que lhes é pedido. Na maior parte das vezes limitamo-nos a utilizar uma linguagem abstracta como, por exemplo, “porta-te bem”. Ora, esta frase por si só é completamente vazia de significado se não explicarmos à criança o que, concretamente, consideramos ser “portar bem”. É preciso ser preciso e objectivo naquilo que se quer, caso contrário é muito provável que adultos e crianças acabem frustrados no processo de gestão dos comportamentos.
Uma vez apreendidas essas regras, como mantê-las e desenvolvê-las? Existe um mecanismo básico por detrás do pensamento social que uma vez apreendido fará com que a pessoa seja capaz de resolver situações diferentes utilizando a generalização do que aprendeu. No entanto, esta generalização não ocorre nas pessoas em que existe um défice da cognição social, sendo desejável que possa contar com o apoio de um técnico para a ajudar a decifrar os códigos sociais a que ainda não teve acesso.
Com as diferentes fases da vida, surgem novos desafios, sendo que as dificuldades para encontrar uma solução eficaz e de forma autónoma persistem, podendo dar origem a comportamentos bizarros. Por exemplo, durante a infantil ou mesmo na escola primária, é visto como natural saltar para o colo da mãe quando ela vai buscar o filho à escola e enchê-lo de beijos. No entanto, o mesmo comportamento na entrada para o 2º ciclo será visto como desadequado pelos colegas. O mesmo se pode passar em relação à proximidade física com a professora.
A chegada da adolescência e do interesse pelo sexo oposto pode também levantar problemas, na medida em que os pensamentos mais íntimos em relação ao outro, podem ser considerados grosseiros ou mesmo ofensivos quando verbalizados sem qualquer censura.

Quando existe um défice da cognição social
Uma vez que a cognição social é a “inteligência das relações”, um défice nesta área tem implicações transversais no nosso dia-a-dia. De facto, estamos em constante relação com o mundo, com outros, seja no trabalho ou em lazer. E um défice nesta área afecta todo o mundo que nos rodeia, com consequências negativas em termos de comunicação e entendimento dos outros e das situações.
Encontramos múltiplos exemplos concretos, resultantes desta condição: a dificuldade em “ler” o conteúdo não-verbal presente numa interacção leva a respostas frequentemente desajustadas e não empáticas; a incapacidade para compreender as intenções ou motivações de alguém, juntamente com uma interpretação literal do discurso, pode levar a que se torne um alvo fácil de situações de bullying; a falta de autocensura na verbalização de pensamentos “politicamente incorrectos” pode afastar os outros, julgando estar na presença de alguém grosseiro e insensível, e por aí adiante.
O desenvolvimento do pensamento inteligência social traz benefícios a crianças com défice de cognição social na medida em que afecta positivamente não apenas a criança, mas também aqueles que a rodeiam, quer em casa, quer na escola ou noutro contexto: o reforço da auto-estima, resultado da percepção de maior eficácia nas relações sociais, e a diminuição de stress relacionado com estas situações, conduzem a um aumento da autonomia e podem mesmo ajudar a desbloquear dificuldades noutras áreas, como as aprendizagens académicas, dependentes em grande parte da nossa capacidade para compreender o outro, as suas motivações e expectativas.
Quando falamos de um défice que está presente na relação com os outros, falamos necessariamente de um sistema dinâmico, onde todas as variáveis têm influência no resultado final. Se é verdade que é importante que estas crianças aprendam a descodificar a linguagem social, para serem capazes de ter um comportamento adequado às expectativas sociais, também não o é menos que tanto pais, como professores devem tentar aprender a lógica peculiar que se encontra por trás do raciocínio da criança.
Muitas vezes o conflito e a tensão que rodeiam as relações com estas crianças, principiam na dificuldade de compreender que a sua forma de pensar o social é diversa da nossa. É muito comum serem vistas como “mal-educadas” ou “antipáticas” e, na realidade, dão motivos para que assim seja. A questão coloca-se na capacidade de compreender as fórmulas que regulam as relações entre as pessoas e o porquê de serem aplicadas em determinadas situações e outras não. Entregues a si próprias para aprenderem este funcionamento, o mais provável é que se isolem cada vez mais, uma vez que não conseguem encontrar qual a lógica que dirige o comportamento social. Paralelamente, a este isolamento, surgem os sentimentos de frustração e tristeza por não serem capazes de compreender o que é que faz com que as suas relações não funcionem.
A intervenção direccionada para o desenvolvimento do pensamento social irá “descodificar” a linguagem social e permitir que a criança passe a compreender o que os outros esperam dela e como pode ir de encontro a esses objectivos. Um exemplo concreto: “um rapaz contou-me que às vezes precisava de ficar um pouco sozinho e que os seus colegas o achavam antipático e respondiam de forma agressiva quando isso acontecia. Perguntei-lhe se me podia contar exactamente quando e como é que estes episódios costumavam acontecer. Ele respondeu-me que quando às vezes queria estar sozinho no recreio dizia aos amigos ‘Deixem-me em paz! Não me chateiem!’ porque era exactamente isso que sentia. Não tinha qualquer consciência de que a sua linguagem, embora transmitisse a ideia, era demasiadamente agressiva e, consequentemente, não conseguia perceber o porquê da reacção negativa dos outros.
Uma vez trabalhado este episódio e as diferentes componentes verbais e não verbais contidas na mensagem, o rapaz compreendeu que não havia nada errado no facto de querer estar sozinho em certos momentos, mas sim na forma como fazia passar essa ideia aos seus amigos”.
Como ajudar estas crianças? Os técnicos que trabalham na área das perturbações do desenvolvimento infantil estão mais bem preparados para ajudar estas crianças, na medida em que compreendem melhor o seu funcionamento cognitivo atípico na área do pensamento social. No entanto, é difícil especificar a formação de base dos mesmos, uma vez que o conhecimento adquirido a este respeito é, normalmente, fruto de formações complementares feitas após a conclusão do curso. Michelle Garcia Winner, que tem diversos trabalhos publicados nesta área, é terapeuta da fala, mas aceita no seu centro de formação desde técnicos de educação especial, a psicólogos e professores de apoio. O mesmo se passa com Carol Gray, autora das “Social Stories”.
Em relação à terapêutica, é desenhado um plano de intervenção individualizado para cada criança, de acordo com as suas dificuldades e objectivos próprios. As estratégias utilizadas durante as sessões prendem-se com o perfil cognitivo das crianças e procuram a maior eficácia na apreensão dos conceitos. Todos somos capazes de aprender, desde que utilizemos as ferramentas adequadas à nossa forma de pensar.
Mas é necessário diferenciar de que problemática estamos a falar. Há crianças com perturbações do desenvolvimento que são excepcionais em termos sociais. Aliás, se existe factor que é crucial na qualidade da integração de uma criança com problemas do desenvolvimento é justamente o pensamento social e as suas competências nesta área.
Poucos de nós utilizarão como critério “ser o melhor aluno” ou “o empregado mais cumpridor” na altura de escolher um amigo. No entanto, factores como ter interesse por nós, estar disponível para ajudar, ser empático com as nossas alegrias e tristezas, ou partilhar gostos terão com certeza um peso apreciável.
Muito do sofrimento das crianças com perturbações de desenvolvimento resulta das dificuldades na sua integração, não tanto por causa das dificuldades existentes na aquisição de conhecimentos académicos, mas pelo sentimento de que não pertencem ao grupo, de que são diferentes. Ora, este grupo faz-se de factores relacionais que podem ser reforçados com o treino do pensamento social. Por outro lado, existe um factor transversal a todas as crianças em que existe um comprometimento do funcionamento cognitivo, que é a incapacidade em relação à interpretação dos sinais subtis que acompanham a comunicação verbal. Neste aspecto, o treino do pensamento social aparece como um factor crucial na prevenção de situações de bullying, das quais estas crianças, facilmente, se podem tornar vítimas.

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